Dezasseis anos depois de “Fátima nunca mais”, o padre Mário de
Oliveira regressa à temática das aparições com o não menos polémico
“Fátima S.A.”. O livro, que resulta de uma longa investigação feita pelo
presbítero-jornalista, demonstra, segundo o autor, que “o Santuário de
Fátima é uma máfia poderosa”.
Frontal e polémico, como é seu timbre, o popular Padre Mário da Lixa,
como também é conhecido, acusa a Igreja de ter cometido em Fátima um
“crime lesa-humanidade” ao criar uma “encenação-ostentação”, repleta de
“vergonha, mentira e crime”. Em entrevista ao JN, adianta mesmo que as
“aparições só têm servido para ludibriar as populações mais
desamparadas”.
Por que diz que “Fátima, S. A.” é antes de mais um livro de humor?
O terrorismo com que tive de lidar, à medida que mergulhava na
chamada Documentação Crítica de Fátima (DCF), quase todos da
responsabilidade do Cónego Formigão, é de tal monta, que, para poder
prosseguir a minha investigação sem vomitar, tive de os ler na saudável
chave de humor. A chave política e também teológica (Deus é Humor, tal
como é Amor) mais eficaz que nos faz ver que, afinal, por baixo de toda
aquela encenação-ostentação com que Fátima hoje se nos apresenta, a sua
senhora vai nua e deixa ver que tudo aquilo mais não é do que vergonha,
mentira e crime.
O título remete para o livro “Vaticano S.A.”, de Gianluigi Nuzzi. Entre Fátima e o Vaticano, que diferenças estabelece?
O título impõe-se-me, à medida que me adentro nos malabarismos do
clero de Ourém, perfidamente orientados pelo Cónego Formigão, o grande
inventor das “aparições” de Fátima, à imagem e semelhança das
“aparições” de Lourdes, em França. Com isso, o papa fez silenciar para
sempre os teólogos católicos, o que perfaz um crime de lesa-inteligência
e de lesa-humanidade, a juntar a tantos outros cometidos, ao longo dos
séculos, pela Cúria romana. O que move o cónego Formigão é a restauração
da diocese de Leiria e, simultaneamente, a recuperação do poder da
igreja católica no país, manifestamente diminuído com a implantação da
República de 1910. A qual não hesitou, e bem, em nacionalizar a maior
parte do seu escandaloso património imobiliário espalhado por todo o
país. E a prova do seu êxito é que, cem anos depois, o Santuário de
Fátima é hoje a poderosa máfia que se vê e que conta com a famigerada
bênção da máfia-mãe de todas as máfias, a Cúria romana.
O Papa Francisco propôs-se moralizar as finanças do Vaticano. Tem esperança que suceda o mesmo em Fátima?
Não duvido dos bons propósitos e das boas intenções de Jorge
Bergoglio, mesmo depois que aceitou ser eleito papa, com o nome de
Francisco. O Papa Francisco bem pode correr e saltar, surpreender as
populações com comportamentos insólitos, mas tudo isso só serve para
entreter os grandes media e desviar as atenções de tudo o que de
sinistro a Cúria romana continua a fazer. Porque não é o papa que manda
na Cúria romana, é a Cúria romana que o elege que manda no papa.
O que mais o surpreendeu na investigação?
Tudo me surpreendeu. Desde logo, a própria existência da DCF, compilada e
autenticada com o aval pretensamente científico da Universidade
Católica Portuguesa. Este meu novo livro é todo fruto desta DCF. Aliás,
eu próprio não pensava voltar ao assunto Fátima, depois do meu primeiro
livro, “Fátima nunca mais”. Quando, porém, me caem diante dos olhos e
nas mãos os primeiros volumes da pretensiosamente chamada DCF, eu
próprio nem queria crer no que ali nos é dado a ler. As aberrações
teológicas são tantas e é tão medonha e criminosa a manipulação,
primeiro, das três crianças, e depois, após a morte dos dois irmãos –
Jacinta, 7 anos, e Francisco, 8 anos – da única sobrevivente Lúcia, 10
anos, ao longo de toda a sua vida histórica, por parte do clero de
Ourém, que é preciso ler para crer. Salta depressa à vista que, até a
imediata restauração da diocese de Leiria e a rápida nomeação do seu
primeiro bispo residencial são feitas à medida, para, com elas, impor
como dignas de fé, as supostas seis encenações teatrais, de Maio a
Outubro de 1917. Porém, bastou a imprevista intervenção do governador do
concelho de Ourém, Artur de Oliveira Santos, o único homem honesto no
meio de toda aquela cretinice clerical, decidir levar para sua casa em
Ourém, no dia 13 de Agosto desse ano, as três crianças, Jacinta,
Francisco e Lúcia, para que “a senhora que vinha do céu” faltasse à
palavra dada no dia 13 de Maio. Nunca, até hoje, o clero de Ourém e a
generalidade da hierarquia da igreja católica, lhe perdoaram esta mais
do que oportuna intromissão no seu teatrinho das “aparições”. E, para
que as seis “aparições” iniciadas em Maio e terminadas em Outubro,
sempre no mesmo dia, à mesma hora e no mesmo local, não ficassem
reduzidas apenas a cinco, o Cónego Formigão, faz escrever um pequeno
relato para memória futura, a dizer que a “aparição” referente a 13 de
Agosto veio a acontecer no dia 19, numa outra hora e num outro local.
Caricato demais, para merecer qualquer credibilidade por parte de alguém
com o mínimo de bom senso e de honestidade intelectual
Encontrou algum condicionamento durante essa pesquisa?
Objetivamente, não. Interiormente, sim. Sou presbítero-jornalista,
formado-formatado durante 12 anos pelo seminário do Porto, filho do
Concílio de Trento, como todos os demais seminários diocesanos, e trago
comigo as marcas degenerativas do fator religioso, que essa
formação-formatação impunha, impõe. A luta interior que tive de travar
para expulsar da minha mente-consciência todas essas crenças
infantilizadoras, foi e continua a ser titânica. Só a minha libertação
interior me habilitou a mergulhar em todo o tenebroso labirinto que são
os documentos que integram os volumes da DCF, e ver o humilhante e o
inumano que tudo aquilo é.
Foi há 16 anos que escreveu “Fátima nunca mais”. Lamenta que o livro não tenha provocado mudanças na gestão do Santuário?
Obviamente que lamento. Não tanto por mim. Sim, pela instituição
igreja católica romana. A sua teimosia em fazer de conta que esse livro
não existe só contribui para o acelerado processo da sua
descredibilização, fruto da sua cegueira. Nem sequer a igreja católica
se dá conta de que, com as sucessivas peregrinações a Fátima, como
expressão suprasumo da fé católica, está hoje a ser a mais eficiente
fábrica de produção de ateísmo e de ateus, mulheres e homens. Para sua
vergonha. E para acelerada corrupção da sociedade. Consequentemente, não
é de estranhar que esteja a ser lançada fora pelas gerações mais
jovens.
Como se explica que, perante as denúncias feitas, os donativos ao Santuário continuem a bater recordes?
É a velha ‘estória’ da pescadinha de rabo na boca. As populações,
milenarmente subjugadas, humilhadas, desamparadas, são criminosamente
levadas a pensar-acreditar que, por si próprias, não podem fazer nada e
que o alívio para os seus quotidianos de dores só pode vir de fora
delas. As populações deixam-se arrastar para aqueles locais e aquelas
instituições que lhes são criminosamente apresentados como libertadores.
O desastre humano é total. Se repetido, ano após ano, geração após
geração, o estado de degradação e desamparo agrava-se e as populações
acabam por morrer no seu inferno de dores.
Mesmo perante as provas mais irrefutáveis, julga que a atitude dos crentes face às aparições não se alteraria?
Enquanto não desaparecerem as causas que produzem multidões e
multidões de vítimas, de desempregados, de escravizados, de
migrantes-refugiados, de assalariados, de analfabetos políticos,
culturais, artísticos, as provas mais irrefutáveis apenas servem para
radicalizar ainda mais os fanatismos religiosos, fruto de ancestrais e
inconscientes medos que elas trazem nos genes, como outros tantos
demónios mudos, que lhes roubam continuadamente a voz e a vez. A própria
Ciência, se não é humilde e intrinsecamente cordial, acaba por se
tornar perversa. Agride ainda mais as multidões condenadas pelo sistema
de poder a terem de viver em labirintos sem saída.
Acredita que, desta vez, foi muito mais longe na desmistificação das aparições?
É, agora, sobejamente claro que Fátima e a sua senhora não têm nada a
ver com Maria, a mãe de Jesus. Que tudo aquilo é negócio, pura
idolatria. Se “Fátima, nunca mais” “matou” Fátima, “Fátima S.A.” faz a
“autópsia” ao cadáver. Com um pormenor nada despiciendo. Neste meu
novolLivro, tudo é devidamente fundamentado na DCF, disponibilizada e
publicada pelo próprio Santuário, inclusive, com transcrições de partes
significativas desses documentos.
Mesmo para um cético, como é o seu caso, não acha que Fátima desempenha um papel fulcral na sociedade portuguesa?
Quem o não reconhece? A questão que nos havemos de colocar é o tipo
de “papel fulcral na sociedade portuguesa” que Fátima representa. E aqui
tenho de dizer, sem que a voz me trema, que no que respeita à igreja
católica romana, Fátima é a vergonha das vergonhas. E se a fé católica
romana é assim tão rasca, como a dos fatimistas, então, é muito mais
digno ser-se agnóstico ou ateu. Já no que respeita ao turismo religioso,
propriamente dito, é óbvio que, sem Fátima, as empresas que têm o mau
gosto de se lhe dedicarem, sofrerão um rombo sem igual, se Fátima vier a
cair em descrédito. Mas, também aqui, é bom sublinhar que se o turismo
religioso é tão rasca como o que Fátima proporciona, os turistas só
terão a ganhar, se passarem a viajar para o ar puro das montanhas, onde o
veneno do Mercado ainda não chegou, e para a simplicidade das aldeias
do interior. Este tipo de turismo alternativo ao religioso faz muito
melhor à saúde e sai muito mais barato. Mas não sou ingénuo. Sei
perfeitamente que o Mercado financeiro jamais vai por aí, tão pouco está
interessado em que as populações vão por aí. De modo algum, quer
populações com saúde e bem-estar, alegres e em relação umas com as
outras. É por isso que, para as agências de turismo religioso do Mercado
financeiro, Fátima é o local ideal para manter populações deprimidas,
tristes, alienadas, humilhadas, autoflageladas, geração após geração. O
que não deixa de constituir um crime de lesa-humanidade que polícia
alguma do mundo investiga, tão pouco, desaconselha. Até estimula e
protege.
Sem Fátima, a orfandade ou o desamparo espiritual não seriam ainda maiores?
Pelo contrário. Tudo em Fátima é altamente deprimente. Orfandade.
Desamparo espiritual. Só gente deprimida, órfã, desamparada
espiritualmente, é capaz de dizer que se sente lá bem. Como o dependente
da droga se sente bem em locais fechados onde todos os que os
frequentam são outros tantos consumidores compulsivos. Como o dependente
do futebol dos milhões, se sente bem, sentado ou de pé, nas bancadas de
luxuosas e grandiosas catedrais das respetivas máfias do dito,
disfarçadas de clubes de futebol. Fátima é a negação de todos estes
valores humanos. Em Fátima, o sofrimento é rei. A depressão é regra. O
viver de joelhos é o objetivo último. Uma vergonha, uma degradação
humana a céu aberto.
Após este livro sente que pouco mais ficou por dizer sobre Fátima?
As “aparições” só têm servido para ludibriar as populações mais
desamparadas. São erradamente levadas a pensar que a solução para os
seus graves e dolorosos problemas se resolvem com peregrinações a pé ou
de carro para lá. Fátima não faz parte da fé católica, pelo que nenhum
católico deixa de o ser, por não acreditar em Fátima. Vou ainda mais
longe e afirmo, também sem que a voz me trema: um bom católico não deve
acreditar em Fátima. Pelo que aqueles católicos, elas e eles, que
acreditam e correm para Fátima, não passam de católicos medíocres.